O caso
Noblat-Toffoli e a promiscuidade de Brasília. Ou: A República dos Fidalgos
cercada pela ralé — nós todos!
Vejam este quadro do francês Jean-Baptiste Debret, que retratou o Brasil do começo do século 19. Olhem ali o escravo a proteger do sol o nhonhô que faz xixi na rua. Os “donos do poder”, para lembrar o livro de Raymundo Faoro, evocado por Roberto Gurgel na sua denúncia, continuam a fazer xixi, agora sobre a República e a Constituição. E os escravos somos nós, os pagadores de impostos do país dos fidalgos.
Recebi muitos pedidos para que escreva algo sobre o post publicado na madrugada de sábado pelo jornalista Ricardo Noblat em seu blog, relatando um episódio estupefaciente. Saía ele de uma festa, em Brasília, quando, disse, foi colhido por uma metralhadora de impropérios disparados por ninguém menos do que José Antonio Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal, membro de um colegiado que distingue apenas 11 pessoas na República.
O ministro estaria descontente com uma opinião
expressa por Noblat, que também havia defendido que ele se declarasse impedido
de participar do julgamento. Reproduz o jornalista as palavras que teriam sido
ditas pelo ministro (em vermelho):
— Esse rapaz é um
canalha, um filho da puta.
Repetiu “filho da puta” pelo menos cinco vezes.
E foi adiante:
— Ele só fala mal de
mim. Quero que ele se foda. Eu me preparei muito mais do que ele para chegar a
ministro do Supremo.
Comentar o quê?
Divirjo de Noblat em muitas escolhas. Quando se
trata de coisa relevante, digo aqui a razão. Mas pergunto: por que motivo
inventaria uma história cabeluda como essa? O jornalismo petralha definiu os
seus inimigos de estimação, não é? Aqueles que estariam sempre, segundo seus
delírios, perseguindo os heróis petistas. Noblat não está entre os alvos fixos
da turma. José Dirceu, se não me engano, é colunista do seu blog — Toffoli
também teria se referido a esse fato com esta fala:
— O Zé Dirceu escreve
no blog dele. Pois outro dia, esse canalha o criticou. Não gostei de tê-lo
encontrado aqui. Não gostei.
Tendo acontecido assim, vê-se um Toffoli
tomando, de público, as dores de Zé Dirceu.
Brasília promíscua
Trabalhei em Brasília em 1996. Detesto sair de
casa, mas fui a algumas poucas festas — poucas: minha filha mais velha tinha
acabado de completar um ano, e minha mulher estava grávida da segunda; preferia
ficar com elas. Já então estranhava o que chamei de “promiscuidade
brasiliense”.
Não havia beberagem no Planalto Central que não
juntasse jornalistas, deputados, senadores, ministros, quadros da burocracia…
Desenvolvi, desde aquela época, tese que tenho até hoje: houvesse no Brasil
tabloides de modelo inglês, a República cairia. E não seria necessário praticar
nenhuma das delinquências do “News of the World”. Se querem saber, o Brasil
seria muito mais saudável. Quantas vezes se viram e se veem respeitáveis
autoridades a sair carregadas de restaurantes da moda, entupidas de álcool, sem
que se tenha publicado uma miserável nota nos jornais? Por que não? Ah, isso
tudo é vida privada!
Uma ova!!! O jornalismo brasiliense desenvolveu uma gigantesca tolerância para desvios de conduta de homens públicos. O pior é que isso está ligado, lá vou eu, ao “fontismo”. Faz parte da camaradagem. Jornalista que decidir contar o que viu nessas festas ou nesses convescotes sabe que está marcado. Ninguém mais vai querer falar com ele — e pode ser alvo de críticas dos próprios colegas.
Uma ova!!! O jornalismo brasiliense desenvolveu uma gigantesca tolerância para desvios de conduta de homens públicos. O pior é que isso está ligado, lá vou eu, ao “fontismo”. Faz parte da camaradagem. Jornalista que decidir contar o que viu nessas festas ou nesses convescotes sabe que está marcado. Ninguém mais vai querer falar com ele — e pode ser alvo de críticas dos próprios colegas.
Noblat não teria escrito nada sobre a festa não
fossem as ofensas de que foi alvo. Tratava-se, segundo fiquei sabendo, de um
encontro na casa de Fernando Neves, ex-ministro do TSE. O blogueiro do Globo não
era o único jornalista. Havia outros. Toffoli não era a única autoridade. Havia
outras. Lá estava Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, um dos advogados de
defesa do mensalão — dos mais estrelados —, em processo no qual Toffoli é…
juiz!
“É assim no mundo inteiro, Reinaldo!” Não!
Errado! NÃO É ASSIM NO MUNDO INTEIRO! Não no mundo democrático. Lamento! Esses
eventos reúnem todas as características da antiga corte, que separava os
fidalgos — ainda que pudesse ter suas divergências — da ralé.
Testemunho
Enviaram-me há pouco uma mensagem — não sei se
é comentário publicado no blog de Noblat ou carta aberta; pouco importa — em que
um rapaz chamado Eduardo Pertence contesta as informações publicadas pelo
jornalista. Vale a pena ler. É um mimo e um emblema do que estou dizendo
aqui.
“Caro Noblat,
Aprendi a lhe respeitar e admirar desde
criança, por consequência do meu pai, Sepúlveda Pertence, seu amigo e
admirador.
Contudo, não posso deixar de demonstrar meu
espanto com essa leviana notícia. Estava eu, junto ao meu pai, nessa mesma
festa. Você foi recebido na mesa dela, com todas as loas e elogios.
Fiquei na festa até o final, chegando a
acompanhar o Min. Toffoli até o seu carro, quando ele foi embora. Afirmo não ter
presenciado nada parecido com o que você noticiou aqui.
Não vi, nem ouvi dele, nada assemelhado as
loucuras aqui publicadas. De minha parte, testemunho que isso não houve. De sua
parte, espero que o Mensalão não esteja alterando sua noção de realidade.
Continue, fora isso, sendo o grande e admirável
jornalista que sempre foi. Com respeito, mas espanto.
Eduardo Pertence.”
Comento:
Sendo verdadeira essa mensagem (refiro-me à
origem do texto, não ao seu conteúdo), noto a ligeireza com que o filho evoca o
nome do pai para demonstrar que, no fim das contas, todos pertencem à mesma
grei: à dos homens incomuns. Noblat é tratado como aquele que é recebido à mesa
— afinal, jornalistas gozam da fidalguia por uma espécie de tolerância, não de
mérito de berço, né? — e que acabou traindo a confiança da turma. Eduardo
Pertence assegura que o fato não se deu (se ele fala a verdade, Noblat seria o
quê?), mas expressa seu respeito ao outro, que segue sendo uma pessoa admirável,
embora, segundo ele, minta um pouquinho… O que Eduardo tem de seu para asseverar
que o outro falta com a verdade? O nome “Pertence” e o fato de conhecer o
blogueiro desde criança…
Ah, sim, para quem não lembra: Sepúlveda
Pertence é ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e é o atual presidente da
Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
Fidalgo quer dizer “filho de algo”. Se
estudarem a origem espanhola da expressão, chegarão a “hi d’algo”, que designava
“home de dinheiro”, por oposição ao Zé Ninguém, ao despossuído.
Eu estou entre aqueles que consideram que um
dos males de Brasília — apenas um deles — é ter criado uma ilha da fantasia que
protege do povo os fidalgos. O poder público se tornou algo a ser compartilhado
entre “os iguais” na fidalguia. Os “diferentes” ficam na periferia:
literalmente, o resto do Brasil.
Estou entre aqueles que acham que deputados,
senadores, ministros de estado, ministros do Supremo, autores em geral perdem
boa parte do direito que os homens comuns têm à chamada “vida privada”. Eu até
poderia encher a cara e dar vexame na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha
de sapé — embora nunca o tenha feito, que me lembre ao menos… Isso não é nem
deve ser notícia. Não carrego a força de uma representação. Não recebo dinheiro
público para ser um homem exemplar. Não disponho dos instrumentos de qualquer
dos Três Poderes da República.
Autoridades da República têm de saber se portar
— e, por óbvio, saber beber. Aliás, como regra geral, todos deveriam ter um
norte ético: “Se beber, não xingue ninguém”.
E fica aqui um convite aos coleguinhas de
Brasília: comecem a contar tudo o que vocês veem em festas e restaurantes. Terá
um poder saneador da República maior do que CPIs e julgamentos do Supremo.
PS – Ah, sim: Nelson Jobim também estava lá.
Mas é inútil perguntar se ele viu alguma coisa.
*Texto por Reinaldo Azevedo ....
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