Vivemos um tempo curioso, estranho. A refundação da República está ocorrendo e poucos se estão dando conta deste momento histórico. Momento histórico, sim. O Supremo Tribunal Federal, simplesmente observando e cumprindo os dispositivos legais, está recolocando a República de pé. Mariana ─ símbolo da República Francesa e de tantas outras, e que orna nossos edifícios públicos, assim como nossas moedas ─ havia sido esquecida, desprezada. No célebre quadro de Eugène Delacroix, é ela que guia o povo rumo à conquista da liberdade. No Brasil, Mariana acabou se perdendo nos meandros da corrupção. Viu, desiludida, que estava até perdendo espaço na simbologia republicana, sendo substituída pela mala ─ a mala recheada de dinheiro furtado do erário.
Na condenação dos mensaleiros e da liderança petista, os
votos dos ministros do STF têm a importância dos escritos dos propagandistas da
República. Fica a impressão de que Silva Jardim, Saldanha Marinho, Júlio
Ribeiro, Euclides da Cunha, Quintino Bocayuva, entre tantos outros, estão de
volta. Como se o Manifesto Republicano de dezembro de 1870 estivesse sendo
reescrito, ampliado e devidamente atualizado. Mas tudo de forma tranquila, sem
exaltação ou grandes reuniões.
O ministro Celso de Mello, decano do STF, foi muito feliz
quando considerou os mensaleiros marginais do poder. São marginais do poder,
sim. Como disse o mesmo ministro, “estamos tratando de macrodelinquência
governamental, da utilização abusiva, criminosa, do aparato governamental ou do
aparato partidário por seus próprios dirigentes”. E foi completado pelo
presidente Carlos Ayres Brito, que definiu a ação do PT como “um projeto de
poder quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de continuísmo seco, raso.
Golpe, portanto”. Foram palavras duras, mas precisas. Apontaram com crueza o
significado destrutivo da estratégia de um partido que desejava tomar para si o
aparelho de Estado de forma golpista, não pelas armas, mas usando o Tesouro como
instrumento de convencimento, trocando as balas assassinas pelo dinheiro
sujo.
A condenação por corrupção ativa da liderança petista ─ e
por nove vezes ─ representaria, em qualquer país democrático, uma espécie de
dobre de finados. Não há no Ocidente, na História recente, nenhum partido que
tenha sido atingido tão duramente como foi o PT. O núcleo do partido foi
considerado golpista, líder de “uma grande organização criminosa que se
posiciona à sombra do poder”, nas palavras do decano. E foi severamente
condenado pelos ministros.
Mas, como se nada tivesse acontecido, como se o PT
tivesse sido absolvido de todas as imputações, a presidente Dilma Rousseff, na
quarta-feira, deslocou-se de Brasília a São Paulo, no horário do expediente,
para, durante quatro horas, se reunir com Luiz Inácio Lula da Silva, simples
cidadão e sem nenhum cargo partidário, tratando das eleições municipais. O
leitor não leu mal. É isso mesmo: durante o horário de trabalho, com toda a
estrutura da Presidência da República, ela veio a São Paulo ouvir piedosamente o
oráculo de São Bernardo do Campo. É inacreditável, além de uma cruel ironia,
diante das condenações pelo STF do núcleo duro do partido da presidente. Foi uma
gigantesca demonstração de desprezo pela decisão da Suprema Corte. E ainda dizem
que Dilma é mais “institucional” que Lula…
Com o tempo vão ficando mais nítidas as razões do
ex-presidente para pressionar o STF a fim de que não corresse o julgamento.
Afinal, ele sabia de todas as tratativas, conhecia detalhadamente o processo de
mais de 50 mil páginas sem ter lido uma sequer. Conhecia porque foi o principal
beneficiário de todas aquelas ações. E isso é rotineiramente esquecido. Afinal,
o projeto continuísta de poder era para quem permanecer à frente do governo? A
“sofisticada organização criminosa”, nas palavras de Roberto Gurgel, o
procurador-geral da República, foi criada para beneficiar qual presidente? Na
reunião realizada em Brasília, em 2002, que levou à “compra” do Partido Liberal
por R$ 10 milhões, Lula não estava presente? Estava. E quando disse ─
especialmente quando saiu da Presidência ─ que não existiu o mensalão, que tudo
era uma farsa? E agora, com as decisões e condenações do STF, quem está
mentindo? Lula considera o STF farsante? Quem é o farsante, ele ou os ministros
da Suprema Corte?
Como bem apontou o ministro Joaquim Barbosa, relator do
processo, o desprezo pelos valores republicanos chegou a tal ponto que ocorreram
reuniões clandestinas no Palácio do Planalto. Isso mesmo, reuniões clandestinas.
Desde que foi proclamada a República, passando pelas sedes do Executivo nacional
no Rio de Janeiro (o Palácio do Itamaraty até 1897 e, depois, o Palácio do
Catete até 1960), nunca na História deste país, como gosta de dizer o
ex-presidente Lula, foram realizadas na sede do governo reuniões desse jaez, por
aqueles que entendiam (e entendem) a política motivados “por práticas criminosas
perpetradas à sombra do poder”, nas felizes, oportunas e tristemente corretas
palavras de Celso de Mello.
A presidente da República deveria dar alguma declaração
sobre as condenações. Não dá para fingir que nada aconteceu. Afinal, são líderes
do seu partido. José Dirceu, o “chefe da quadrilha”, segundo Roberto Gurgel,
quando transferiu a chefia da Casa Civil para ela, em 2005, chamou-a de
“companheira de armas”. Mas o silêncio ensurdecedor de Dilma é até
compreensível. Faz parte da “ética” petista.
Triste é a omissão da oposição. Teme usar o mensalão na
campanha eleitoral. Não consegue associar corrupção ao agravamento das condições
de miséria da população mais pobre, como fez o ministro Luiz Fux num de seus
votos. É oposição?
Marco Antonio Villa é historiador, professor da
UFSCar
Nenhum comentário:
Postar um comentário