Por Adriano Ceolin, na VEJA:
Na próxima semana, o Diário Oficial da União vai publicar
a exoneração de Vera Lúcia Albuquerque, secretária de Inspeção do Trabalho do
Ministério do Trabalho. A servidora ocupava o cargo havia quase dois anos e, nos
últimos meses, começou a ser pressionada para não cumprir o seu dever. Em março
do ano passado, fiscais do Ministério do Trabalho depararam em Americana, no
interior de São Paulo, com uma daquelas cenas que ainda constrangem o Brasil. No
canteiro de obras de uma empreiteira responsável pela construção de residências
do projeto Minha Casa, Minha Vida — o mais ambicioso programa habitacional do
governo federal para a população de baixa renda –, foram resgatados 64
trabalhadores mantidos em condições tão precárias que, tecnicamente, são
descritas como “análogas à escravidão”. Eles eram recrutados no Nordeste e
recebiam adiantamento para as despesas de viagem, hospedagem e alimentação. A
lógica é deixar o trabalhador sempre em dívida com o patrão. Assim, ele não
recebe salário e não pode abandonar o emprego. É o escravo dos tempos
modernos.
Os fiscais de Vera Lúcia encontraram trabalhadores em
condições irregulares nos canteiros de obras tocadas pela MRV, a principal
parceira do governo no Minha Casa, Minha Vida. Isso colocou a construtora na
lista das empresas que mantêm seus empregados em condições degradantes, o que as
impede de fazer negócios com a União e receber recursos de órgãos oficiais.
Assim, em obediência às regras, a Caixa Econômica Federal suspendeu novos
financiamentos à MRV, cujas ações perderam valor na bolsa. O que Vera Lúcia não
sabia é que muita gente acima dela considera a construtora intocável. Ela conta
que começou a receber pressões de seus superiores no ministério para tirar a MRV
da “lista suja”. A auditora resistiu, mas as pressões aumentaram muito depois de
uma visita de Rubens Menin, dono da MRV, ao ministro do Trabalho, Brizola Neto.
Desde então, ela passou a ser questionada pelos assessores do ministro sobre a
legitimidade da inspeção da obra de Americana. Um deles chegou a insinuar que os
fiscais não tinham critérios nem qualificação para autuar as empresas. “Estão
querendo pôr um cabresto político na inspeção do trabalho”, disse Vera, dias
depois de renunciar ao cargo.
Após a incursão no Ministério do Trabalho, Menin e
diretores procuraram Maria do Rosário, ministra da Secretaria de Direitos
Humanos, e Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência.
Eles tentaram demonstrar que os problemas apontados pela inspeção já haviam sido
resolvidos. Na conversa com a ministra Maria do Rosário, a construtora se
ofereceu para aderir ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo,
convenção entre o governo, entidades da sociedade civil e empresas. “Ainda
assim, pelas regras, não havia como tirar a MRV da lista”, disse José Guerra,
coordenador-geral da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho
Escravo.
Além da falta de pagamento de salários e da retenção da
carteira de trabalho, os fiscais encontraram o alojamento em péssimas condições
de higiene, além de comida de má qualidade e estragada. O relatório da
fiscalização listou 44 infrações na obra, comprovadas por meio de fotos e
depoimentos de trabalhadores. “Os trabalhadores tinham restringido seu direito
de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador, da retenção de suas
carteiras de trabalho e, principalmente, por meio do não pagamento do salário”,
diz o relatório. Assinado por dois auditores fiscais, o documento afirma que a
MRV usou empresas terceirizadas para diminuir custos trabalhistas e aumentar a
margem de lucro do empreendimento: “Os contratos de prestação de serviços
firmados pela MRV não passam de simulacros”. Os fiscais também registraram o
fato de que os proprietários das empresas terceirizadas eram ex-funcionários da
própria MRV.
Entre 2003 e 2011, o governo flagrou 35 000 trabalhadores
mantidos em condições degradantes. A maior parte dos casos ainda ocorre em
fazendas do Norte, mas eles já não são mais uma raridade em áreas urbanas. A
fiscalização e a inclusão das empresas infratoras no cadastro são os
instrumentos mais eficientes para inibir a ação dos exploradores. Vera acredita
nisso e não cedeu. Só restou ao ministro Brizola Neto indeferir o pedido de
reconsideração feito pela MRV ao ministério. A empresa, porém, conseguiu decisão
favorável, em caráter liminar, no Superior Tribunal de Justiça. Por essa razão,
setores do governo estudam mudanças nos critérios de inspeção. “Há um debate
sobre a necessidade de aperfeiçoar os procedimentos de inclusão de empresas na
lista, para evitar que eles possam ser questionados na Justiça, como vem
ocorrendo”, informa a Secretaria-Geral da Presidência. Fica a lição: não apenas
a escravidão, mas as demais mazelas do país tendem a se perpetuar enquanto as
Veras Lúcias do serviço público forem obrigadas a sair do caminho por se
recusarem a trair sua consciência e compactuar com o
erro.
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